O sequestro do financiamento do saneamento básico no Brasil

O povo brasileiro está subsidiando a privatização dos recursos hídricos que, antes da lei de Bolsonaro, eram públicos. 
As grandes empresas estão utilizando empréstimos que se beneficiam de incentivos fiscais federais — em teoria destinados a investimentos em infraestrutura — para financiar privatizações. É o que revela um novo relatório do Centro Internacional de Transparência e Pesquisa em Fiscalidade Corporativa e o Sindicato Sindae-Bahia, que examina de perto a BRK Ambiental, empresa privada de saneamento controlada pelo asset manager canadense Brookfield. A BRK está acumulando dívidas bilionárias, com apenas uma fração sendo destinada a investimentos. 

Enquanto isso, a população está pagando tarifas cada vez mais caras, e as melhorias prometidas pela privatização ainda não foram cumpridas. Em outras palavras, o povo está pagando uma segunda vez pela água que até alguns anos atrás era nossa.
Será que vamos acabar pagando uma terceira vez, caso o sistema privado fracasse e o público tenha que resgatá-lo, como já aconteceu em outros países?

“R$ 5 de cada R$ 10 captados”

  • Segundo levantamento, empresas privadas usaram em benefício próprio R$ 5 de cada R$ 10 dos recursos captados na B3 por meio de incentivo governamental criado para levar água e esgoto a 84 milhões de brasileiros que não têm acesso a esses serviços.

  • Empresas emitem títulos de dívidas, recebem descontos em seus impostos, mas a maior parte do dinheiro obtido com essas operações no mercado de capitais vai para a financiar ou refinanciar os valores na aquisição de novas concessionárias, e não para investir nos serviços que elas já prestam.

As vencedoras dos leilões de saneamento vêm usando os recursos obtidos com o benefício tributário não para realizar obras essenciais, mas sim para comprarem outras concessões e aumentarem seu controle do saneamento básico brasileiro.

Por meio da emissão de debêntures incentivadas – que são dívidas emitidas pelas empresas no mercado e contam com incentivo governamental –, elas captaram R$ 38,9 bilhões na última década, dos quais R$ 21,1 bilhões (54,3% do total) tiveram como destino principal ou secundário o pagamento total ou parcial de outorgas dos leilões de saneamento. Outorga é a permissão formal concedida pelo governo para a utilização do serviço.

Estes números fazem parte do estudo “o Sequestro do Financiamento do Saneamento Básico do Brasil”, realizado pelo CICTAR (sigla em inglês para Centro Internacional de Transparência e Pesquisa sobre Tributação Corporativa), em parceria com o SINDAE-Bahia (Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente). A Confederação Nacional dos Urbanitários (CNU), a Internacional de Serviços Públicos (ISP) e o Observatório de Direitos de Água e Saneamento (Ondas) estão apoiando o relatório.

Criadas pelo governo federal em 2011 pela Lei 12.431 para atrair recursos a projetos estratégicos de infraestrutura em diversos setores (de energia à mobilidade urbana), as debêntures incentivadas funcionam como empréstimos que as empresas de saneamento podem contrair de investidores no mercado de capitais que, até 2024, tinham isenção de imposto de renda sobre os rendimentos nesta operação. Com a Lei 14.801/24, a vantagem passou a ser da própria empresa emissora da dívida, que passou a deduzir um valor equivalente aos juros pagos neste “empréstimo” no imposto devido.

A mudança pode ampliar ainda mais a captação de recursos pelas concessionárias privadas para financiar a compra das concessões de saneamento básico brasileiras, dado que elas podem descontar os juros do pagamento das debêntures do seu imposto de renda
— Livi Gerbase, pesquisadora para América Latina e Caribe do CICTAR

Segundo ela, essa situação poderia ser evitada se o governo proibisse a emissão de debêntures incentivadas para o pagamento ou refinanciamento de outorgas em novos leilões, sobretudo em lotes do Sul e Sudeste do país, onde o retorno é mais lucrativo, mas não necessariamente onde há maior urgência de obras de melhorarias para o saneamento.

A prática de pagar altos valores para o governo para garantir a vitória em um leilão de concessão de saneamento básico já gerou pelo mundo casos de corrupção e repasse dos altos valores das outorgas para os consumidores, tanto que a França, em 1995, proibiu esta prática. No Brasil, não só não estamos proibindo, estamos estimulando com recursos públicos
— Livi Gerbase

O caso do BRK Ambiental

Para ilustrar esse processo, o estudo analisou o caso da BRK Ambiental. Controlada pelo fundo de private equity canadense Brookfield, ela é a oitava maior empresa de saneamento do Brasil. De 2017, quando surgiu, até hoje, a BRK dobrou seu faturamento, chegou a ser avaliada pelos seus acionistas em cerca de R$ 10 bilhões, mas registrou resultados financeiros tímidos ou até prejuízos devido ao seu alto endividamento.

Para ilustrar esse processo, o estudo analisou o caso da BRK Ambiental. Controlada pelo fundo de private equity canadense Brookfield, ela é a oitava maior empresa de saneamento do Brasil. De 2017, quando surgiu, até hoje, a BRK dobrou seu faturamento, chegou a ser avaliada pelos seus acionistas em cerca de R$ 10 bilhões, mas registrou resultados financeiros tímidos ou até prejuízos devido ao seu alto endividamento.

Isso porque os investidores sabem que a concessionária opera subsidiárias em mais de 100 municípios com taxas médias de lucro próximas a 10%, apesar de a empresa-mãe ter tido prejuízo médio de -0,1% no período de 2020 a 2024. Só nesses quatro anos, a BRK emitiu R$ 18,3 bilhões em dívidas, sobretudo debêntures, contra apenas R$ 7,8 bilhões em investimentos.

A maior expansão da BRK ocorreu em 2020, quando comprou a concessão da Região Metropolitana de Maceió por R$ 2 bilhões. Para isso, captou R$ 3,7 bilhões em debêntures, sendo R$ 1,9 bilhão em títulos com o incentivo fiscal. No entanto, nos três primeiros anos de concessão, os investimentos somaram apenas R$ 409 milhões, de acordo com dados publicamente disponíveis de 2020 a 2023. A empresa alega um valor maior de investimentos entre 2021 e 2025, de R$ 904 milhões. Para cumprir o que foi acordado com o BNDES e com o governo, R$ 2 bilhões de investimento até 2026, a empresa teria que investir em 2026 R$ 1,1 bilhão de reais, mais do que investiu nos últimos cinco anos na concessão somados.

De acordo com o estudo do Cictar, as consequências deste endividamento pesam sobre trabalhadores, cofres públicos e consumidores. O FI-FGTS, que detém 30% da BRK Ambiental Participações, recebeu apenas 1,43% dos dividendos que as subsidiárias pagaram para a empresa-mãe nos últimos cinco anos. Os salários e as condições de trabalho da empresa não acompanharam o crescimento do faturamento, e os impostos pagos foram irrisórios: em 2024, a BRK desembolsou apenas R$ 52,2 milhões, contra R$ 1,2 bilhão da concorrente Aegea, que fatura três vezes mais.

Para os usuários, os serviços chegaram mais caros e com falhas: a tarifa média da companhia subiu 71%, entre 2017 e 2024, percentual acima da inflação. Também são comuns as denúncias contra a empresa, que vão desde o lançamento irregular de esgoto, o descumprimento de contratos e as interrupções no abastecimento, resultando em multas de R$ 50 milhões por todo o Brasil, além de duas CPIs, em Tocantins e em Blumenau.

O caso BRK ilustra como a lógica das concessões no saneamento concentra ativos, valoriza empresas para uma futura revenda e gera endividamento crônico, sem garantir melhoria na qualidade nem expansão da rede de esgoto no Brasil
— Fernando Biron do SINDAE-Bahia

O relatório recomenda que o governo federal revise com urgência a política das debêntures incentivadas, proibindo seu uso para o pagamento ou refinanciamento de outorgas. A análise sugere ainda que órgãos como a Caixa Econômica Federal, que gere o FGTS, e o BNDES (responsável por estruturar os leilões) deixem de sustentar conglomerados privados e usem esses recursos para financiar diretamente a expansão do saneamento, com transparência e supervisão social. O relatório também cobra da BRK Ambiental explicações sobre seu endividamento elevado e a baixa contribuição em impostos e dividendos, ressaltando que a controladora canadense Brookfield não pode tratar o saneamento básico no Brasil como um simples ativo de sua carteira de investimentos, ávida por lucros. 


Contato para imprensa

Agência Pauta Social

Adriana Souza Silva (11) 98264-2364 | [email protected]


Resposta da empresa

Antes da publicação deste relatório, o CICTAR enviou uma lista detalhada de nossas conclusões à Brookfield e à BRK Ambiental. Em resposta, um porta-voz da BRK afirmou:

“Este relatório distorce dados, apresenta informações desatualizadas sobre os investimentos realizados pela BRK e ignora a realidade de um setor regulado, com regras rígidas, supervisão contínua e metas estabelecidas pelo poder público. A BRK é administrada pela Brookfield, uma gestora responsável de negócios que investe e direciona seu foco para a prestação dos melhores níveis de serviço às partes interessadas do município, dentro de um setor regulado. Nos últimos três anos, a BRK investiu aproximadamente R$ 4 bilhões em obras estruturais, expandindo o acesso às redes de abastecimento de água e saneamento para mais de 564.000 residências em todo o Brasil.

A crítica ao uso de debêntures é infundada: trata-se de um instrumento legítimo, previsto em lei, supervisionado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e essencial para viabilizar os investimentos que estão transformando o saneamento no Brasil. Esse mecanismo foi criado pelo poder público justamente para permitir o financiamento de infraestrutura de longo prazo — um setor que exige investimentos intensivos em capital e retornos ao longo de décadas.

É completamente falso afirmar que o pagamento de juros comprometeu Investimentos ou força de trabalho da BRK. Entre janeiro de 2024 e meados de 2025, a empresa contratou, promoveu e reconheceu milhares de funcionários. A BRK manteve um CAPEX médio anual de aproximadamente R$ 1 bilhão, prova concreta do nosso compromisso com a expansão dos serviços e a entrega de resultados. O recente maior volume de pagamentos de juros decorre do aumento da taxa básica de juros no mercado doméstico — um fator macroeconômico que afeta toda a economia brasileira e está fora do controle da administração da empresa.

Vale destacar que a maior parte dos ativos da BRK ainda está em fase de ramp-up, fase que exige grandes investimentos financiados principalmente por meio de dívida. Nesse contexto, é natural que a distribuição de dividendos ocorra apenas quando os serviços forem universalizados, e não durante as fases iniciais das operações. Tanto o reinvestimento de dividendos quanto a emissão de debêntures receberam a aprovação unânime dos acionistas Brookfield e FI-FGTS, investidores de longo prazo da empresa, engajados com a estratégia da BRK e com o setor de saneamento.

Os municípios atendidos pela BRK estão entre os mais bem avaliados do país, segundo o Principais rankings de saneamento do Brasil. Com base no Ranking Nacional de Saneamento 2025, elaborado pelo Instituto Trata Brasil, Limeira (SP) conquistou o segundo lugar nacional e o primeiro lugar entre as cidades operadas por empresas privadas, com serviços universalizados. Aparecida de Goiânia (GO) subiu 12 posições e alcançou a sexta posição, destacando-se entre os municípios que mais investiram em saneamento. No Tocantins, as 46 cidades operadas pela BRK têm 100% de abastecimento de água, e Palmas (TO), com serviços de água e esgoto universalizados, é a capital mais bem avaliada da Região Norte. Na Região Metropolitana de Maceió (AL), por exemplo, já foram investidos mais de R$ 770 milhões — valor superior ao reportado erroneamente no relatório —, garantindo avanços significativos. Um cronograma robusto de obras está em andamento, em linha com as metas contratuais estabelecidas.

Por fim, é fundamental destacar que os investimentos privados têm acelerado a transformação do saneamento no Brasil. Desde a aprovação da Segundo o Marco Legal, entre 2020 e 2023, a participação do setor privado nos investimentos cresceu de 15,1% para 27,3%, atingindo R$ 6,7 bilhões em 2023. Nesse período, 6,3 milhões de domicílios passaram a ter acesso à água tratada e outros 6,1 milhões foram ligados à rede de esgoto, representando a maior transformação da história do setor.”

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